quinta-feira, 17 de julho de 2014

Imbolc e o puerpério

Se o inverno é gestação - um momento de interiorização, silêncio e escuridão para criar nova vida, novos projetos, novas ideias e de descanso e preparação para o plantio -, o Imbolc é o puerpério. 

Puerpério é o nome que se dá ao período logo após o parto, em que o bebê recém nascido começa a adaptar-se ao mundo aqui fora e a mãe, também recém nascida, aprende (muitas vezes a duras penas) sobre como exercer sua nova condição. É um período delicado, muito emocional, em que normalmente a nova mãe enfrenta noites mal dormidas ou sem dormir, tem poucas oportunidades para ir ao banheiro ou tomar banho, e raramente tem uma refeição não interrompida ou pulada. A plenitude silenciosa da gravidez dá lugar a um bebê que chora e que não sabemos ainda como acalentar. Amamentar no começo é difícil e até doloroso, pois nenhum dos envolvidos sabe ainda como fazer. É um período de perda de identidade, em que a mulher deixa de ser aquela que costumava ser, com suas individualidades, talentos, liberdades e tarefas, mas ainda não estabilizou sua nova eu - a mãe.

É uma grande mudança e, como todas as mudanças, exige esforço e assusta um pouco.

O bebê humano nasce antes de estar completamente pronto, e é muito defendida a visão de que é necessária uma exterogestação após o parto, em que a mãe e o bebê, ainda mergulhados na sombra, encontram-se um ao outro, e através desse encontro é que estabelecem as fundações do relacionamento que construirão juntos ao longo dos anos.

Não tem nada melhor nesse momento do que quando uma mulher experiente, que já foi mãe antes, vem na casa da puérpera. Pode ser a mãe ou a sogra, uma irmã mais velha ou uma amiga verdadeira. Ela passa um pano nos móveis, varre o chão, lava a louça, enfia roupa dentro da máquina e depois pendura para secar, faz comida para a semana e congela em porções individuais e fáceis de aquecer no forno. Ela segura no colo o bebê para que a mãe possa ir ao banheiro, tomar banho, comer, tirar um cochilo. Ela ajuda com a pega certa na amamentação, tranquiliza as inseguranças da mãe, reforça nela a fé de que ela é capaz e está fazendo tudo certo.

Quando iniciamos um novo projeto, precisamos dessa voz amiga. Quando o inverno parece perdurar para sempre é que precisamos acender uma chama e confiar que o verão virá pela frente, com todas as suas possibilidades. Vejo a deusa Bríd, neste momento do Imbolc, assumir esse papel.

Bríd é normalmente representada como tríplice, patrona das artes, poesia e inspiração, da cura, da família e do lar. Ela é associada ao fogo, seja da forja ou da lareira, e é representada com chamas saindo do topo da cabeça. Ela também é associada com parto e amamentação, pois é conhecido o hábito de se colocar uma crosog (Cruz de Brigid, ou de Santa Brígida), uma cruz característica feita de junco ou de trigo, na cabeceira da parturiente para ajudá-la a dar à luz e proteger a díade mãe-bebê. É uma deusa polivalente e considerada por alguns contraditória, pois apesar de toda a sua associação com fogo, há poços sagrados a Bríd por toda a Irlanda, e normalmente esses poços possuem tradição de suas águas serem curativas.

Bríd possui muitos nomes: Brigid, Brighid, Brigit, Briggidda, Brigantia, ou ainda Santa Brigida, uma figura religiosa poderosíssima na Irlanda, e a principal santa deste país. É uma deusa celebrada em muitos países europeus, O nome Brigit vem provavelmente do antigo Brigantī, "A Alta", "A Sublime", e em sua homenagem foram nomeados vários rios: Braint (Anglesey) e Brent (Middlesex), e também possivelmente Bregenz na Áustria e Brechin na Escócia. O manuscrito Glossário de Cormac oferece uma etimologia improvável para o nome da deusa: "Breo Saighead"--"flecha flamejante."

No Glossário de Cormac a deusa Bríd, uma dos Tuatha De Danann, é descrita como trigêmeas, filhas do Daghda, todas com o mesmo nome. Uma era a deusa da poesia, outra da forja, e uma terceira da cura. A poesia a relaciona naturalmente aos bardos, e à sabedoria. A forja e o ofício do ferreiro eram relacionados à magia, assim como a cura. No Livro das Invasões é dito que ela possuía dois bois poderosos chamados Fea e Men, e também Torc Triath o rei dos javalis, o que indica que ela poderia estar associada à fartura, ao sustento e à alimentação.

A data sagrada de Bríd é justamente o Imbolc, celebrado no hemisfério norte no começo de fevereiro, e aqui no começo de agosto. Há uma deusa chamada Cailleach, a megera do inverno, de cabelos brancos e pele azul, que traz o frio, a neve e a tempestade no inverno, e diz a lenda que nessa época do Imbolc ela derrete e transforma-se em Bríd, trazendo o calor da primavera porvir. É, mesmo, uma chama a se acender no meio do inverno.

No manuscrito da Segunda Batalha de Moytura conta-se que Bríd casa-se, a exemplo do pai de Lugh, com um filho dos inimigos Fomorianos, Bres o Belo. Ele deve tornar-se rei pois o rei anterior, Nuada, perdeu um braço e pela lei irlandesa não pode mais governar, mas é provável, como com outros reis irlandeses, que ele tenha precisado casar-se com ela para poder tornar-se rei, o que evidenciaria um aspecto de Bríd como Deusa da Soberania. Não por coincidência considera-se que a palavra galesa para rei, brenin, é derivada da forma hipotética brigantīnos, significando "consorte da deusa Briganti". Bres então casa-se com Bríd e torna-se rei dos Tuatha unindo as tribos rivais, mas não é um bom rei. Ele é por consequência deposto e corre para junto dos Fomorianos, sua tribo de origem, declarando guerra contra os Tuatha e é essa batalha que é travada na planície de Moytura e dá nome ao conto.

O  filho que Bríd tem com Bres chama-se Ruadan, um jovem guerreiro. Aproveitando-se de sua origem dupla, durante a batalha ele é enviado pelos Fomorianos para espionar a tribo materna, e para matar o ferreiro dos Tuatha, Goibhniu. Ele aproxima-se como aliado e pede uma lança a Goibhniu, que a entrega ao jovem. Nesse momento, Ruadan trai a família da mãe e fere Goibhniu mortalmente. Mas o ferreiro é muito forte e habilidoso, e usa a mesma lança para matar Ruadan com um só golpe. Ao ficar sabendo da morte de seu filho Bríd solta um lamento tão alto que é ouvido por toda a Irlanda e por esse lamento ela é especialmente lembrada, pois este episódio dá a ela atribuições de unificadora e de deusa da maternidade e da paz sob a visão de alguns.

O culto a Bríd na Irlanda era amplo e muito forte. Em Kildare conta-se que havia um templo em sua homenagem, onde 19 sacerdotisas alternavam-se dia após dia para manter permanentemente acesa uma chama. Diz a lenda que no vigésimo dia a própria deusa vinha olhar pelo fogo. Com a chegada do Cristianismo na ilha, o culto a Bríd era tão forte que não conseguiram erradicá-lo, então ela foi transformada em santa e adotada pelos cristãos irlandeses. No século VI foi erguido um monastério em Kildare no mesmo lugar do antigo templo, e as freiras do monastério mantiveram essa tradição de manter aceso um fogo para a Santa. No século XIII foi construída uma enorme catedral no lugar do monastério, e as freiras continuaram seu trabalho de manutenção do fogo até que no século XVI o Rei Henrique VIII fechou e destruiu muitos monastérios, igrejas e congregações católicas. No dia de Imbolc, em 1º de Fevereiro de 1807, Daniel Delany, Bispo de Kildare, restaurou a Irmandade de Santa Brígida, com o objetivo de retomar o legado e o espírito da santa. Em 1993, a chama perpétua foi finalmente reacendida por Mary Teresa Cullen, que era a líder na época das Irmãs de Santa Brígida.

Hoje é possível visitar em Kildare a praça central onde há uma imagem da santa, a imensa e imponente catedral, e também a fundação do antigo monastério, onde os fiéis concentram suas oferendas à santa-deusa, de velas, objetos pessoais, fotos, fitas e crosoga. Mais afastado do centro da cidadezinha é possível visitar também um dos poços dedicados a ela, um recanto muito bonito em meio a trigais, onde há um poço sob uma árvore e também um pequeno riacho e uma pequena capela, tudo sob o olhar de uma Santa Brígida de pedra em tamanho real. Caminhando por esses lugares é fácil sentir que, como deusa e como santa (pois as duas se misturam), o culto a Bríd é muito profundo e move muitas pessoas.

O Imbolc, data sagrada de Bríd, é o meio do inverno e é também o primeiro toque de primavera deste inverno, a primeira chama que se acende, quando nos climas temperados, onde o inverno é branco e intenso, os primeiros ramos verdes começam a insinuar-se na terra congelada. Aqui no nosso tropical RJ não é isso o que acontece, pois nosso inverno é suave e, na maior parte do tempo, bastante quente. O frio, quando vem, é revigorante e um bom momento para comer um fondue e assistir filmes enrolados num edredom. Mas há no ar uma energia, uma sensação de recolhimento maior. Essa é sempre uma época para mim de pausar, refletir, reagrupar, bolar estratégias. Nessa época, entre o Solstício de Inverno e o Imbolc calha de ser sempre quando eu revejo conceitos, modifico rumos, ou simplesmente paro e penso. Tradicionalmente essa é mesmo a época da faxina da primavera, de jogar fora tudo aquilo o que não serve mais, para estarmos prontos para a chegada de tempos mais quentes, e essa faxina é física e também espiritual, imaterial. É um momento de transição, como Cailleach virando Bríd.

Oimelc, usado por alguns pagãos como nome deste festival, significa "leite de ovelha" (pois este é o tempo em que as ovelhas parem seus filhotes e portanto seu leite torna-se disponível em abundância), reforçando a relação com a maternidade. Leite é um símbolo comum do Imbolc, sendo comumente bebido nesta data, e também ofertado à terra. Leite é um grande símbolo de nutrição, proteção, continuidade e reafirmação da vida, e imortalidade. A mulher que amamenta sustenta seu filho com apenas seu corpo, e por isso antigas culturas mostraram reverência a este ato (o contrário do que é feito em nossa sociedade hoje em dia, em que muitas vezes mães amamentando são constrangidas em locais públicos ou são razão de piada em programas de humor duvidoso na TV).

Nos momentos mais tempestuosos do puerpério, em que meu bebê chorava e eu chorava junto, e em que tudo o que mais queríamos e precisávamos era muito leitinho, tranquilidade, revigoramento e cura, foi por Bríd que chamei incessantemente, agarrada à minha crosóg pingente, pedindo que ela pusesse suas mãos sobre mim, sobre minha filha e sobre a minha casa, e permitisse que essa novíssima relação fosse abençoada e, a exemplo da primavera vindoura, crescesse com viço e força para um dia dar bons frutos. E tive meu pedido atendido, pois a primavera sempre chega.


E é por essa mão que abençoa e acalenta que podemos chamar a qualquer momento, para abençoar nossos novos projetos, novas empreitadas, e novos eus. Isso porque tradicionalmente o Imbolc é sim relacionado a um momento de limpeza, de preparação para o que está por vir, mas é também um momento de acender uma chama e ter fé. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário